Entrevista
Entrevista a Sérgio Pontes, presidente do Conselho Fiscal
6 Agosto 2025
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«A capacidade de devolver valor aos membros é um indicador relevante de uma boa gestão»


«Uma política de gestão direcionada para os membros e guiada por "princípios de equilíbrio e sustentabilidade, reduzindo os financiamentos". É esta a avaliação global que o presidente do Conselho Fiscal faz da performance económico-financeira da Ordem. Sérgio Pontes afirma que a mobilização de recursos tem sido determinada em função do interesse público e da missão da instituição. Nesta entrevista, o também professor universitário, perspetiva ainda as implicações decorrentes da renovação geracional e da introdução da IA como «catalisador de mudança.»


Contabilista – Integra, desde 2018, o Conselho Fiscal da Ordem. Primeiro como revisor oficial de contas e a partir de 2023 como presidente. Que balanço faz do trabalho desenvolvido ao longo destes anos?

Sérgio Pontes –
O balanço é claramente positivo. Desde o início de funções, inicialmente enquanto ROC, e mais recentemente a presidir ao órgão, temos procurado cumprir com isenção e rigor o papel de fiscalização que nos é confiado. Acompanhámos de forma regular a situação económico-financeira da Ordem, trabalho desenvolvido em estreita articulação com o auditor externo, com quem mantemos contacto regular para discutir os designados riscos de distorção material, os níveis de materialidade, os procedimentos de auditoria e as respetivas conclusões. Contamos também com a colaboração dos serviços da Ordem e da Direção, que têm garantido uma resposta pronta e competente às solicitações do Conselho Fiscal. 

Como tem sido a articulação com os outros órgãos, nomeadamente com o Conselho de Supervisão e o Provedor dos Destinatários dos Serviços, após a entrada em vigor do novo estatuto, que alterou o organigrama da organização?

O trabalho do Conselho Fiscal é, por natureza, um trabalho de equipa, e é nessa lógica de colaboração interna e articulação com os restantes órgãos que temos procurado cumprir a nossa missão. A este propósito é devida uma palavra de apreço aos colegas com quem tive oportunidade de trabalhar no anterior mandato, em particular ao anterior presidente, bem como aos colegas que me acompanham atualmente. A entrada em vigor do novo estatuto trouxe uma reorganização da arquitetura institucional da Ordem, com a criação do Conselho de Supervisão e da figura do Provedor. O Conselho Fiscal adaptou-se a esta nova realidade com naturalidade, mantendo o foco nas suas competências próprias. Com o Conselho de Supervisão, temos mantido um relacionamento pautado pela disponibilidade e cooperação. Trata-se de um órgão com um âmbito de atuação próprio – que inclui, entre outras competências, a supervisão da legalidade da atividade exercida pelos órgãos da Ordem – mas com o qual partilhamos preocupações fundamentais tais como a conformidade e a transparência. Um exemplo dessa cooperação é o facto de disponibilizarmos, de forma sistemática e permanente, ao Conselho de Supervisão as convocatórias e as atas do CF, prática que contribui para o escrutínio e reforça a articulação entre órgãos.
No que respeita ao Provedor dos Destinatários dos Serviços, sendo um órgão independente com a missão de analisar queixas e formular recomendações para o aperfeiçoamento do desempenho da Ordem, não existe por definição uma articulação operacional com o Conselho Fiscal. A relação com os restantes órgãos sociais tem decorrido num clima de diálogo institucional construtivo, que permite reforçar a função de fiscalização, contribuindo para a boa governação da Ordem.


A missão do Conselho Fiscal é fiscalizar e emitir pareceres sobre os orçamentos e relatórios e contas do Conselho diretivo. Como analisa o grau de cumprimento?

Conforme resulta dos nossos relatórios e pareceres, os Relatórios e Contas da Ordem têm vindo a apresentar, em todos os aspetos materiais, a posição financeira, o desempenho e os fluxos de caixa de forma apropriada, razão pela qual a certificação legal das contas tem sido emitida, de forma consistente, na modalidade não modificada, demonstrando o alinhamento dos documentos de prestação de contas com os normativos aplicáveis. No que tange ao orçamento este é, por natureza, um instrumento previsional, baseado em estimativas e pressupostos sobre o futuro. Como tal, é natural que, por vezes, os acontecimentos não decorram exatamente como previsto, podendo ocorrer desvios materialmente relevantes entre o orçamentado e o realizado. A função do Conselho Fiscal não é impedir que existam variações – que são próprias da gestão – mas sim garantir que essas variações sejam devidamente explicadas e fundamentadas. Nesse sentido, temos verificado que os Relatórios e Contas apresentados pelo Conselho Diretivo incluem informação desagregada sobre rendimentos e gastos, com a identificação dos principais desvios face ao orçamento e a respetiva justificação. 

Como tem sido a evolução do desempenho financeiro ao nível dos indicadores de autonomia e solvabilidade?

Qualquer utilizador das demonstrações financeiras reconhecerá o balanço como a ferramenta indispensável para avaliar a sustentabilidade financeira de uma entidade. O Balanço é uma imagem estática da posição financeira da organização num dado momento, refletindo os recursos económicos controlados, as obrigações presentes e os fundos próprios acumulados. Tal como previsto na Estrutura Conceptual, o Balanço fornece informação útil sobre a estrutura financeira da entidade, sobre a sua autonomia financeira e solvência. Os sucessivos relatórios e contas anuais, publicados e disponibilizados no site da Ordem, permitem a qualquer interessado confirmar, com base objetiva, a evolução da posição financeira da instituição. De forma geral, a direção da OCC tem mantido uma política de gestão orientada por princípios de equilíbrio e sustentabilidade, reduzindo os financiamentos, o que se traduz numa estrutura patrimonial sólida.


O relato integrado intercalar é, de há sete anos a esta parte, um compromisso regular em nome da transparência das contas. Gostaria de destacar alguma marca nestes documentos, onde a vertente da sustentabilidade está cada vez mais presente?

O Relato Integrado Intercalar tem sido, ao longo dos últimos anos, uma prática regular da Ordem em abono da transparência, da prestação de contas e da proximidade com os seus membros. Do ponto de vista do Conselho Fiscal, é um instrumento que contribui positivamente para reforçar a confiança dos utilizadores na informação financeira e não financeira da instituição. Destacaria, em particular, a evolução que estes relatórios têm vindo a revelar, designadamente, através do alargamento progressivo da informação prestada. Para além da dimensão financeira, tem vindo a ser integrada informação diversa, tal como, sobre a atividade dos órgãos sociais, sobre formação, sobre os membros e colaboradores, e sobre indicadores de desempenho operacional. Sendo adepto de uma visão pragmática do relato, que, aliás, me levou a investigar no âmbito do doutoramento modelos diferenciados de relato, entendo que o Relato Intercalar poderia beneficiar de uma maior aproximação à filosofia da IAS 34. Refiro-me, em particular, à eliminação de repetições de informação já divulgada em relatório anteriores, anuais ou intercalares, o que pode contribuir para tornar estes documentos ainda mais focados e eficazes.

Boas práticas, boa governança e uma eficiente gestão de recursos, são indicadores fundamentais em qualquer organização.  Como avalia o que tem sido feito nestes domínios?

A boa governança, a gestão eficiente dos recursos e a adoção de boas práticas não são apenas requisitos formais — são, hoje, condições essenciais para a sustentabilidade de qualquer organização. Do ponto de vista do Conselho Fiscal, a avaliação destes domínios parte, naturalmente, da análise económico-financeira, mas não se esgota nela. Importa considerar, igualmente, o modo como os recursos são mobilizados em função do interesse público e da missão da Ordem. Nesse sentido, destaco a diversidade e quantidade de serviços disponibilizados aos membros da OCC. Estamos a falar, entre o mais, de respostas a pedidos de parecer, da produção e atualização de manuais técnicos, de uma oferta formativa muito vasta, não só em termos de conteúdos, mas também de formatos, do desenvolvimento de ferramentas tecnológicas de apoio ao exercício da profissão. Esta capacidade de devolver valor aos membros, com uma cobertura nacional efetiva, é, na nossa perspetiva, um indicador relevante de boa gestão direcionada para os membros.

Relativamente ao futuro da profissão, há gerações que abandonam o seu exercício, após o cumprimento da sua missão, e outras que entram. Como vê este passar de testemunho e o que pode mudar?

A profissão está, naturalmente, em transição à semelhança do mundo em geral. Temos assistido, por um lado, à saída de profissionais com longos anos de experiência e, por outro, à entrada de novas gerações, talvez com perfis mais digitais, eventualmente mais sensíveis à sustentabilidade e possivelmente com expectativas diferentes em relação ao exercício da atividade. Este movimento é natural, exigindo da Ordem uma atenção redobrada à forma como se garante a continuidade da profissão com qualidade e ética.
Esta transição terá implicações relevantes para a Ordem, quer em termos estratégicos, quer na afetação de recursos. A renovação geracional influencia o desenho da formação, o investimento em plataformas tecnológicas e até a comunicação institucional.
No relatório “Future ready: accountancy careers in the 2020s”, a Association of Chartered Certified Accountants (ACCA) identifica cinco grandes áreas onde os contabilistas poderão contribuir de forma decisiva: como assurance advocates, business transformers, data navigators, digital playmakers e sustainability trailblazers. Como assurance advocates, os contabilistas reforçam o seu papel em ambientes cada vez mais complexos e digitais, ajudando a garantir transparência, confiança e responsabilidade. Como digital playmakers e data navigators, lideram a integração da tecnologia na função financeira, aplicando análise de dados, inteligência artificial e automação na criação de valor. E como sustainability trailblazers, assumem um novo protagonismo na medição e reporte de indicadores não financeiros, cada vez mais determinantes na avaliação do desempenho organizacional.

São muitas dimensões para uma profissão só…

Neste novo paradigma, também os modelos de carreira estão a evoluir. Assistimos ao abandono progressivo de percursos lineares, substituídos por trajetórias mais flexíveis, com mudanças frequentes de função e atualizações constantes de competências. A aprendizagem torna-se mais digital, a formação contínua deixa de ser uma obrigação regulatória para se tornar um imperativo profissional. A profissão exigirá uma combinação equilibrada de competências técnicas, éticas e humanas, da inteligência digital à emocional, sem esquecer a integridade. 

Como docente na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), como perspetiva os principais desafios que se colocam à nova geração de profissionais: a Inteligência Artificial vai mudar o perfil da profissão e a necessidade de recursos humanos? 

Tem sido reconhecido que uma das maiores dificuldades da educação contemporânea é que estamos a formar pessoas para empregos que ainda não existem, com tecnologias que ainda estão a ser desenvolvidas, para resolver problemas que ainda não sabemos se teremos. Neste cenário, mais do que transmitir apenas conhecimento técnico, é essencial desenvolver capacidades de adaptação, pensamento crítico, resiliência e aprendizagem contínua. No seu livro “21 Lições Para O Século XXI”, Yuval Harari faz interessantes reflexões sobre estas temáticas considerando a capacidade de aprender e desaprender como uma relevante competência no mundo atual. Para isso, os futuros profissionais devem desenvolver a capacidade de trabalho autónomo, colocando em si próprios o ónus da aprendizagem. Um professor aponta caminhos, proporciona orientação, mas a aprendizagem resulta sobretudo da capacidade dos estudantes. Esta capacidade de aprender é uma competência que os estudantes de hoje, profissionais do futuro, devem desenvolver.  Uma outra, é a capacidade e o compromisso com o trabalho. E aqui tenho de citar outro livro que recomendo: “Outliers” de Malcom Gladwell, que brilhantemente demonstra que o compromisso tem um papel relevante no sucesso. Permita-me só que cite esta frase: “It takes 10 000 hours of practice to make you an expert of anything”  (“São necessárias 10 000 horas de prática para torná-lo um especialista em qualquer coisa”). Por fim, o entusiasmo, a paixão que se coloca no que se faz e aqui referencio um outro interessante livro, “Talk Like TED”, de Carmine Gallo, quando refere “nothing great has been achieved without enthusiasm” (“Nada de extraordinário foi alcançado sem entusiasmo”). Portanto, as novas gerações vivem novos desafios? Sim. Mas acredito, como procuro transmitir aos meus alunos, que os desafios se superam com capacidade de estudo autónomo, com compromisso com o trabalho e com entusiasmo! A inteligência artificial é efetivamente um catalisador de mudança. Vai automatizar tarefas rotineiras, mas também vai libertar tempo para aquilo que é mais distintivo nos profissionais: a interpretação, o julgamento profissional, a empatia, a capacidade de comunicar e decidir em contextos complexos. O perfil da profissão vai, naturalmente, evoluir: menos centrado na execução mecânica, mais orientado para a análise e para o apoio à decisão.

A academia e a profissão têm de estar cada vez mais em diálogo e articuladas, em busca das melhores soluções?

A articulação entre a academia e a profissão é essencial, mas não suficiente. O verdadeiro desafio está em abrir a universidade ao mundo real, às suas exigências, transformações e incertezas. A formação não deve ser pensada em circuito fechado, mas pelo contrário é imperativo que seja permeável à prática profissional, à inovação tecnológica, ao contexto económico e ainda às preocupações sociais e ambientais que hoje moldam o exercício de qualquer atividade. O ensino da contabilidade, e da gestão em geral, deve evoluir num diálogo constante com as Ordens, os profissionais no terreno, mas também com empreendedores, organizações da sociedade civil e outros agentes de mudança. Só assim formaremos profissionais verdadeiramente preparados para pensar, agir e evoluir num mundo altamente incerto.




PERFIL


Sérgio Pontes nasceu em Leiria, há 48 anos. O facto de ter crescido numa família de contabilistas fê-lo seguir a tradição familiar. A sua atividade diária divide-se entre a revisão legal de contas, a docência e o exercício de cargos sociais. Na OCC (onde está inscrito desde 1999) integra o Conselho Fiscal, desde 2018, primeiro como ROC e desde 2023 como presidente. Anteriormente, foi consultor externo da instituição e ministrou formações presenciais e à distância, com enfoque particular no dossiê da transição para o SNC. É licenciado em gestão pelo ISEG, pós-graduado em fiscalidade pelo ISG, mestre em contabilidade e auditoria pela Universidade Aberta e doutor em contabilidade pelo ISCTE. Na academia, é, atualmente, o responsável pelo departamento de Ciências Económicas e Empresariais da Universidade Autónoma de Lisboa e, colabora pontualmente com o ISCTE Executive Education.


Entrevista Nuno Dias da Silva | Fotos Raquel Wise 

Entrevista publicada na Revista Contabilista n.º 303 - Julho 2025